A invasão dos food trucks

Febre nos Estados Unidos, os restaurantes sobre rodas começam a ganhar espaço (e fãs) nas ruas brasileiras

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Com a experiência que tem de cozinha, a peruana Marisabel Woodman, de 26 anos, poderia abrir um restaurante francês chiquérrimo ou um bar com menu degustação a preços exorbitantes. Casada com um brasileiro, Marisabel morou dois anos em Paris. Lá, estudou gastronomia e trabalhou num restaurante com três estrelas do guia Michelin. Quando voltou ao Brasil, foi cozinhar com Alex Atala nos restaurantes D.O.M. e Dalva e Dito. Tem um belo currículo, portanto. Quando resolveu abrir seu negócio, Marisabel declinou da ideia de criar um espaço gastronômico requintado. Optou por cozinhar na rua. Comprou um caminhão e o transformou num restaurante móvel, um food truck, batizado por ela de La Peruana. Foi lá, entre cotoveladas e trombadas, dividindo o espaço de 10 metros quadrados com ela e mais três ajudantes, que aprendi a fazer um ceviche clássico – e descobri como é a vida numa cozinha sobre rodas.

A ideia de Marisabel não é nova. O primeiro food truck surgiu em 1872, na cidade de Providence, nos Estados Unidos. O dono, Walter Scott, vendia tortas e sanduíches para trabalhadores de fábricas. Os operários precisavam de comida barata e rápida – e os sanduíches vendidos em carrinhos eram uma boa opção. Até o começo do ano 2000, os food trucks ainda carregavam o estigma de comida barata, de baixa qualidade. Isso mudou com a crise econômica de 2008, que levou muitos restaurantes a fechar suas portas. Sem opção, alguns chefs investiram na velha modalidade despojada de fazer comida.

Neste ano, mesmo sem crise, a febre chegou ao Brasil. Só em São Paulo, mais de 300 empreendedores pediram autorização para estacionar seus food trucks. O sucesso se repete em outros Estados. Segundo o site Food Truck nas Ruas, que ajuda a localizar os carrinhos, há opções no Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Brasília e Minas Gerais. O principal atrativo para proprietários é o preço. Incluindo o valor do veículo, cozinha e montagem, um food truck custa cerca de R$ 250 mil – mais barato que abrir um restaurante. As refeições saem, em média, por R$ 20. De olho nesse mercado, muitos chefs tentam se adaptar às cozinhas apertadas. Será que eu conseguiria fazer o mesmo?

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Cozinhar num caminhão não é fácil. O espaço apertado me fez esbarrar nos colegas da cozinha o tempo todo. O calor da chapa e do fogão invade o espaço pequeno – assim como a gordura que evapora das carnes e frituras. Mesmo usando uma touca, saí de lá cheirando a peixe frito. Os ingredientes para fazer os pratos costumam vir pré-preparados de uma cozinha fora do caminhão. Marisabel deixa o peixe cortado em saquinhos, com a quantidade certa. Os molhos usados para temperar o peixe também já estão todos prontos, assim como o purê de batata-doce que acompanha o prato. “O segredo é colocar o sal na medida certa e mexer bem, para o peixe pegar todos os gostos”, diz. Parecia fácil. Pus o peixe no prato e salguei. Adicionei o coentro e a pimenta, mexi bem. Coloquei os outros ingredientes e mexi de novo. Marisabel provou, para ver se eu havia acertado. Exagerei no sal. “Não tem problema, é só colocar mais limão”, disse. Enquanto me ensinava a fazer ceviche, os clientes começaram a aparecer. “Gosto de ver a cara do cliente, de conversar com ele”, diz Marisabel. O que para ela é motivo de alegria, para mim foi motivo de angústia. Não vi nenhuma fila organizada. Normalmente, as pessoas ficam amontoadas na frente do balcão, olhando o que você faz. Alguns continuam na frente do balcão mesmo depois de pedir e atrapalham a fila. Outros se afastam   demais do food truck e obrigam o cozinheiro a berrar várias vezes o mesmo nome. Espaço à parte, a principal diferença entre cozinhar num food truck e numa cozinha comum é esse contato direto com os clientes. Num restaurante, quem lida com as exigências e ansiedades dos clientes são os garçons e gerentes. Num food truck não existe essa barreira. O cozinheiro faz tudo: ouve pedidos, lava louça e lida com as oscilações de humor do público. Assim que terminei de fazer o ceviche, saí correndo da cozinha. Estar lá fora é bem mais confortável.

A rotina que me pareceu infernal  não incomoda outros estreantes na gastronomia. Para ter um food truck de sucesso, não é preciso ter formação sofisticada como Marisabel. Fui conhecer a cozinha do Le Camion, que serve risotos e hambúrgueres em São Paulo. Doni Nascimento, de 44 anos, é o dono. Tinha uma carreira de mais de 20 anos na publicidade, quando mudou de profissão. Fez cursos profissionalizantes de gastronomia, estagiou em alguns restaurantes e resolveu montar o próprio negócio. Apostou no food truck – e acertou. “Tenho eventos praticamente todos os dias”, diz.

Os restaurantes móveis não podem estacionar em qualquer lugar. Para parar na rua, é preciso uma autorização da prefeitura. Ela normalmente é concedida para um ponto fixo – algo que não faz sentido para os food trucks, cujo objetivo principal é estar cada hora num lugar. A solução para esse impasse são os food parks, galpões que servem como estacionamento para vários caminhões de comida. Cada dia, o food truck para num deles, assim percorre a cidade. Ou se instala em diferentes eventos. “A graça é estar cada hora num lugar”, diz Nascimento.

Nascimento me mostrou a estrutura que permite o funcionamento do Le Camion. A cozinha segue o padrão da maioria dos food trucks: na parte da frente, logo abaixo do balcão onde os clientes fazem os pedidos, ficam as geladeiras. Na parte de trás, a pia, uma chapa, um fogão industrial e uma fritadeira. Normalmente, eles também têm um gerador. Em cima do food truck fica uma caixa-d’água, que pode ter de 80 até 300 litros. A água suja que sai da pia vai para outro compartimento e  fica armazenada. Ao fim de cada jornada de trabalho, esse compartimento precisa ser esvaziado. O gás é fornecido por dois botijões embaixo da bancada de trabalho – com um sistema para evitar vazamentos. Depois de conhecer as instalações, pus a touca e lavei as mãos. Fui seguindo as instruções de Nascimento. Dessa vez, não errei. Pelo menos, o cliente não reclamou.

Mesmo com o calor, as trombadas, e eventuais fregueses antipáticos, a experiência de estar dentro de dois food trucks por algumas horas foi divertida e útil, mesmo para uma cozinheira amadora. Aprendi a deixar alimentos pré-prontos e a só dar o acabamento na hora, uma boa dica para quem não tem tempo para cozinhar. Também passei a valorizar minha cozinha. Costumava achar minha pia pequena. Quando voltei para casa, ela me pareceu enorme. Se, em alguns centímetros de pia, consegui fazer um risoto e um ceviche, não há nada que não possa fazer na minha cozinha.

Fonte: http://epoca.globo.com/

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